Quando a idade avança e os horizontes
se encurtam ficamos mais sujeitos a ataques de saudosismo e então optamos,
invariavelmente, para olhar para o passado onde o horizonte é bem mais vasto que
aquele que temos pela frente. Sabemos que o caminho já percorrido foi muito
mais longo do que aquele que nos falta percorrer. Perante essa constatação ficamos
nostálgicos a recordar o passado que agora, à distância de várias décadas,
vemos em tons cor de rosa esquecendo possíveis momentos mais complicados que eventualmente
possamos ter vivido. Quando visitamos o passado não resistimos à tentação de
fazermos comparações com o momento presente e invariavelmente chegamos à
conclusão que nesses tempos já distantes era tudo bem melhor. Poucos de nós, os
mais idosos, ou se preferirem, os mais experientes e talvez mais sábios,
resistem a esta tentação. Eu sou um desses nostálgicos saudosistas dos tempos idos.
Que fique bem claro que não estou a falar de política porque essa missão eu
deixo para aqueles que não percebem patavina do assunto mas que vivem “à grande e à francesa” à custa dela, que o
mesmo é dizer, à nossa custa.
Este mês, porque me sinto desiludido, direi
mesmo que zangado e descrente com o caminho que os homens tomaram e com o
comportamento egoísta e desumano que caracteriza a sociedade actual decidi
virar as costas a toda a porcaria que me rodeia e olhar para o passado. O
comentário deste mês terá um cariz diferente do habitual, irei falar de saudade mas de uma coisa eu não abdico, falar também
de Sintra, só que desta vez duma Sintra
insuspeitada pelos mais novos, uma Sintra que existiu e que “os rapazes” e
“raparigas” da minha idade teimam em não esquecer. Uma Sintra que infelizmente
não existe mais. Hoje quero recordar a Sintra que num dia frio de Janeiro me
viu nascer, que embalou a minha infância e que alimentou os meus sonhos de
adolescente. ,A Sintra que não é a mesma que agora assiste e ampara o meu
rápido envelhecimento. Nós sintrense dizemos frequentemente que Sintra parou no
tempo, não evoluiu e que nada mudou de então para cá. Não é verdade Sintra
mudou sim senhor e nem sempre para melhor. Senão vejamos:
Há várias décadas atrás Sintra
era uma vila pacata onde todas as pessoas se conheciam pelos nomes e se
saudavam quando se cruzavam nas ruas. Não havia nesse tempo congestionamentos
de trânsito para nos pôr os nervos em franja porque o automóvel não estava
acessível à esmagadora maioria da população. Nas estradas circulavam carroças e
burros em que os saloios transportavam os produtos da sua lavra que vinham
vender à vila. No Natal eram também os vendedores de perus que os conduziam em
grupos numerosos pelas estrada e caminhos de Sintra, perus esses que iriam ser sacrificados para
enriquecer a ceia de Natal das famílias sintrenses. No que respeita ao carnaval,
nessa época começava no início de Janeiro, logo a seguir à quadra natalícia,
quando começavam a aparecer nas mãos do jovens foliões as bisnagas, saquinhos
com serradura, rabinhos, bombas de rabiar, estalinhos e frasquinhos mau cheiro.
Ninguém se ofendia e todos aceitavam a brincadeira com boa disposição. Havia
cegadas a percorrer as ruas a satirizar tudo e todos, bailes de máscaras nas
colectividades e teatros carnavalescos bem divertidos. No que se refere à
actividade comercial pode parecer impossível hoje, mas não havia nesse tempo
estabelecimentos fechados em Sintra, o comércio estava bem vivo e de boa saúde.
Havia lojas de todos os ramos. Padarias, (só na Estefânea eram três no espaço
de 100 metros), sapatarias, várias mercearias, tabernas eram mais que muitas,
barbeiros, cabeleireiros, lojas de móveis e de alugueres de bicicletas, lojas
de solas e cabedais, alfaiates e sapateiros, talhos, lojas de pronto a vestir,
drogarias e ferragens, cafés, pastelarias,
pensões e estalagens, papelarias, peixaria, lugares de frutas e hortaliças, farmácias,
papelarias, lojas de brinquedos, e
tantos outros estabelecimentos que cobriam todas as necessidades de consumo dos
sintrenses. Havia duas salas de cinema e até existia um casino a funcionar, onde
se viveram ali noites glamourosas. Os cafés estavam abertos até tarde e ninguém
arredava pé antes acabar o programa de televisão e as soirées nos cinemas. Havia
nessa época vida nas noites de Sintra.
Recordo com saudade os
cheiros que emanavam das fábricas de bolos e queijadas, do pão quente das
padarias, da moagem do café nos armazéns do Baeta, e o aroma bom do café moído
na ocasião na pastelaria Ideal, sempre que um cliente ali ia comprar 250 gramas
ou meio-quilo de café que as disponibilidades financeiras não permitiam mais.
Escolas primárias eram quatro, a do Morais e do Rodas na Estefânia e duas em S.
Pedro de Penaferrim.
Tenho pena que o eléctrico
não vá actualmente até à Vila Velha como antigamente. Até a chiadeira provocada
pela fricção do rodado nos carris no centro da Estefânia a na Volta do Duche me
soa a esta distância como uma agradável sinfonia. No centro histórico existiam
nada menos que quatro hotéis todos eles carregados de história, o Hotel Costa hoje
o posto de turismo de Sintra, o Hotel Central, agora a funcionar apenas como
café e restaurante, o Hotel Nunes, onde se encontra instalado o Tivoli Sintra,
e o ultimamente tão badalado Hotel Neto cujas ruínas emporcalham a zona
histórica de Sintra, ali paredes meias com o Palácio Nacional. Uma palavra
ainda para o comboio com as suas velhinhas carruagens puxadas por enormes e
assustadoras locomotivas a vapor, negras e fumegantes. Já vai longa este rol de
saudades mas não posso terminá-la sem referir o estado de conservação dos
edifícios. Não havia nesse tempo casas em ruínas. Todas elas se encontravam bem
conservadas e habitadas, havia roupa a secar nas janelas e das chaminés saía
fumo sempre que se aproximava a hora de preparar as refeições. Ouviam-se os
risos das crianças. Todas as casas palpitavam vida.
É impossível não fazer
comparações entre a Sintra desse tempo e a Sintra dos nossos dias. O balanço
final entre o que melhorou e o que se perdeu, penso que o resultado é negativo.
Dou como exemplo os edifícios em ruínas espalhadas um pouco por toda a vila de
Sintra. Isto para não falar já na marginalidade que aumentou assustadoramente e
a desumanização das pessoas. Hoje quase ninguém se conhece nem se saúda. Há
mais população mas menos convívio e menos solidariedade. Haveria ainda muito
mais a dizer mas já vai longa a conversa.
Ora digam lá se esses eram
ou não os bons velhos tempos? Para muitos não serão mas são-no para mim que estou
velho e numa fase aguda de saudosismo. Não será possível poder recuar algumas
décadas atrás para podermos ter a nossa velha Sintra de volta?
Guilherme Duarte
( Este texto está escrito de
acordo com a ortografia antiga).